29/08/2013

As Regras Do Futebol De Rua

FUTEBOL DE RUA
Luís Fernando Veríssimo
Pelada é o futebol de campinho, de terreno baldio. Mas existe um tipo de futebol
ainda mais rudimentar do que a pelada. É o futebol de rua. Perto do futebol de rua qualquer
pelada é luxo e qualquer terreno baldio é o Maracanã em jogo noturno. Se você é homem,
brasileiro e criado em cidade, sabe do que eu estou falando. Futebol de rua é tão humilde que
chama pelada de senhora.
Não sei se alguém, algum dia, por farra ou nostalgia, botou num papel as regras
do futebol de rua. Elas seriam mais ou menos assim:

DA BOLA – A bola pode ser qualquer coisa remotamente esférica. Até uma bola
de futebol serve. No desespero, usa-se qualquer coisa que role, como uma pedra, uma lata
vazia ou a merendeira do seu irmão menor, que sairá correndo para se queixar em casa. No
caso de se usar uma pedra, lata ou outro objeto contundente, recomenda-se jogar de sapatos.
De preferência os novos, do colégio. Quem jogar descalço deve cuidar para chutar sempre
com aquela unha do dedão que estava precisando ser aparada mesmo. Também é permitido o
uso de frutas ou legumes em vez da bola, recomendando-se nestes casos a laranja, a maça, o
chuchu e a pêra. Desaconselha-se o uso de tomates, melancias e, claro, ovos. O abacaxi pode
ser utilizado, mas aí ninguém quer ficar no golo.

DAS GOLEIRAS – As goleiras podem ser feitas com, literalmente, o que estiver
à mão. Tijolos, paralelepípedos, camisas emboladas, os livros da escola, a merendeira do seu
irmão menor, e até o seu irmão menor, apesar dos seus protestos. Quando o jogo é
importante, recomenda-se o uso de latas de lixo. Cheias, para agüentarem o impacto. A
distância regulamentar entre uma goleira e outra dependerá de discussão prévia entre os
jogadores. Às vezes esta discussão demora tanto que quando a distância fica acertada está na
hora de ir jantar. Lata de lixo virada é meio golo.

DO CAMPO – O campo pode ser só até o fio da calçada, calçada e rua,
calçada, rua e a calçada do outro lado e – nos clássicos – o quarteirão inteiro. O mais comum
é jogar-se só no meio da rua.

DA DURAÇÃO DO JOGO – Até a mãe chamar ou escurecer, o que vier
primeiro. Nos jogos noturnos, até alguém da vizinhança ameaçar chamar a polícia.

DA FORMAÇÃO DOS TIMES – O número de jogadores em cada equipe varia,
de um a 70 para cada lado. Algumas convenções devem ser respeitadas. Ruim vai para o
golo. Perneta joga na ponta, a esquerda ou a direita dependendo da perna que faltar. De
óculos é meia-armador, para evitar os choques. Gordo é beque.

DO JUIZ – Não tem juiz.

DAS INTERRUPÇÕES – No futebol de rua, a partida só pode ser paralisada
numa destas eventualidades:
a) Se a bola for para baixo de um carro estacionado e ninguém conseguir tirá-la. 2
Mande o seu irmão menor.
b) Se a bola entrar por uma janela. Neste caso os jogadores devem esperar não
mais de 10 minutos pela devolução voluntária da bola. Se isto não ocorrer, os jogadores
devem designar voluntários para bater na porta da casa ou apartamento e solicitar a
devolução, primeiro com bons modos e depois com ameaças de depredação. Se o
apartamento ou casa for de militar reformado com cachorro, deve-se providenciar outra bola.
Se a janela atravessada pela bola estiver com o vidro fechado na ocasião, os dois times
devem reunir-se rapidamente para deliberar o que fazer. A alguns quarteirões de distância.
c) Quando passarem pela calçada:
1) Pessoas idosas ou com defeitos físicos.
2) Senhoras grávidas ou com crianças de colo.
3) Aquele mulherão do 701 que nunca usa sutiã.
Se o jogo estiver empate em 20 a 20 e quase no fim, esta regra pode ser
ignorada e se alguém estiver no caminho do time atacante, azar. Ninguém mandou invadir o
campo.
d) Quando passarem veículos pesados pela rua. De ônibus para cima. Bicicletas
e Volkswagen, por exemplo, podem ser chutados junto com a bola e se entrar é golo.

DAS SUBSTITUIÇÕES – Só são permitidas substituições:
a) No caso de um jogador ser carregado para casa pela orelha para fazer a
lição.
b) Em caso de atropelamento.

DO INTERVALO PARA DESCANSO – Você deve estar brincando.

DA TÁTICA – Joga-se o futebol de rua mais ou menos como o Futebol de
Verdade (que é como, na rua, com reverência, chamam a pelada), mas com algumas
importantes variações. O goleiro só é intocável dentro da sua casa, para onde fugiu gritando
por socorro. É permitido entrar na área adversária tabelando com uma Kombi. Se a bola
dobrar a esquina é córner.

DAS PENALIDADES – A única falta prevista nas regras do futebol de rua é
atirar um adversário dentro do bueiro. É considerada atitude antiesportiva e punida com tiro
indireto.

DA JUSTIÇA ESPORTIVA – Os casos de litígio serão resolvidos no tapa.



Saudade da coxa de catupiry

Humberto Werneck, mineiro de Belo Horizonte, é jornalista e escritor, autor de O Espalhador de Passarinhos & Outras Crônicas e uma delas eu tive em minha prova, então eu deixo aqui com vocês:
Humberto Werneck
Sou do tempo dos salgadinhos reconhecíveis.
Ilustração: ATTÍLIOVocê me entende: do tempo em que, diante da bandeja, a gente não tinha dúvidas — o que ali estava era croquete, coxinha, pastelzinho, empadinha, cigarrete, canapé, barquete ou pastel português. Sem chance de equívoco. Bem diferente, admita, dos dias de hoje, em que é preciso recorrer ao garçom para decifrar enigmas culinários, alguns deles tão complexos e empetecados que você se pergunta se não seriam, em vez de comida, peças decorativas, quem sabe umas ikebanas. Sim, vivemos a era em que salgadinho demanda apresentação. Deveria vir com legenda.
Nada contra a modernização do tira-gosto. Mas me dê um tempo para me adaptar. Outro dia, num casamento, estenderam na minha direção um artefato aparentemente comestível, algo como uma coxinha esférica, acoplada a um talo branco. Era, de fato, uma minicoxinha, creio que de frango — mas e o misterioso talo branco, grosso demais para ser palito? Na roda, um comensal mais ousado se aventurou a mastigá-lo, e aí se deu conta de que, naquele casamento chique, ele tinha na boca um vulgar pedaço de cana. Coxinha com cana — onde vamos parar? E o que fazer com o bagaço? Além de legenda, certos salgadinhos modernos demandam modo de usar.
Muita coisa surgiu na vida de meus maxilares tão fatigados desde a primeira dentição. Na minha infância belo-horizontina não tinha shiitake, rúcula nem kiwi, por exemplo. Se alguém dissesse mamão papaia, daria a impressão de estar se referindo a certa modalidade sexual — tanto quanto a também inexistente quiche correria o risco de soar como interjeição: quiche Maria! Em compensação, tinha Crush, drops Dulcora, açúcar-cândi, que depois sumiram do mapa.
Como sumiu o cajuzinho. Onde foi parar o cajuzinho? Você vai me dizer que não sei onde tem uma “dona” que faz. Coisas de Belo Horizonte: em alguma parte, em geral na periferia, tem sempre uma dona que faz o docinho, o salgadinho que desapareceu das vitrines. Não duvido de que nalgum recanto da capital haja uma dona do cajuzinho. Vai ver que é a mesma do bolinho de feijão.
Este foi outro que sumiu, o bolinho de feijão. O poeta Paulo Mendes Campos contou numa crônica que certa vez trouxe do Rio uma inglesa, exclusivamente para lhe aplicar o bolinho de feijão. Mas no bar de que fora frequentador, na Guajajaras, não havia um sequer. Como o poeta insistisse, o dono pôs um moleque para correr o Centro atrás de bolinho de feijão — e o saldo da expedição foram míseras três unidades, de três procedências. O escritor não estava inteirado da revolução por que passara o universo dos salgadinhos desde que ele deixou Belo Horizonte. Eis um assunto que deveria interessar aos estudiosos.
Não é o meu caso — sou mero (e voraz) consumidor, vivendo fora de Minas faz décadas —, mas arrisco uma hipótese. Houve um momento, ali pelo fim dos anos 70, começo dos 80, em que hordas de salgadinhos modernos fizeram avassaladora entrada, expulsando os tradicionais para a periferia, reduto das donas. O quartel-general da inovação pode ter sido a Torre Eiffel, que existiu na Goitacazes com a Espírito Santo. Ou foi a também extinta Doce Docê, na subida da Afonso Pena? O fato é que a certa altura a paisagem do salgadinho passou a ser dominada pela coxa de catupiry. Lembra? Enorme, obesa! E dava trabalho a quem a abocanhava: era você cravar os dentes e o catupiry derretido pelando vazava queixo abaixo. Valia por um almoço. A versão mais requisitada era a de camarão — e camarão taludo, pois mineiro, privado de mar, vai à forra nesse quesito.
Gente, que fim levou a coxa de catupiry? Tem por aí alguma dona que faz?